Excelências;
Face à anunciada alteração ao Regime Jurídico das Armas e sua Munições (RJAM), da qual apenas são publicamente conhecidas as propostas de alteração ao seu diploma de base; a lei 5/2006, de 23 de fevereiro, que o Ministério da Administração Interna (MAI) difundiu, apenas no passado dia 10 de agosto, por diversas associações;
Sendo do conhecimento público e já tendo sido formalmente assumido pelo MAI que outros diplomas constitutivos do RGAM irão também sofrer alterações de fundo (lei 42/2006 de 25 de agosto, diversos Decretos-Lei e Portarias);
Constatando-se que a lei 5/2006, de 23 de fevereiro já foi revista e alterada profundamente em relação à sua versão original sendo que, neste momento, vigora a sua 6ª alteração e prepara-se a 7ª;
Note-se que estar constantemente a legislar sobre a mesma matéria, mudando radicalmente as regras de uma revisão para a outra, destrói a confiança no Estado e é uma estratégia de política criminal contraproducente.
Sabendo-se que as sucessivas modificações daquele diploma e de outros que também constituem o RJAM já são tantas e tão profundas que desvirtuaram os objetivos originais do legislador e a própria estrutura do RJAM;
Sendo conhecidas as crescentes dificuldades que as magistraturas têm quando confrontadas com esta “manta de retalhos” em que se tornou o RJAM;
Sendo conhecidas inúmeras críticas ao RJAM, não só das próprias magistraturas, como de eminentes juristas, estudiosos desta matéria, OPC’s, Advogados, desportistas, colecionadores, caçadores, entre outros;
Sabendo-se que algumas dessas críticas incidem sobre violações do que de mais sagrado existe no nosso Estado de Direito;
Sabendo-se que há magistrados, juristas e estudiosos desta matéria, que consideram que o RJAM integra previsões e proibições que são inconstitucionais;
Sabendo-se que diversas das “definições legais” atualmente em vigor pecam por deficiências de ordem técnica, científica, jurídica e – até – por deficiente redação sob o ponto de vista do domínio da nossa língua Portuguesa;
Sabendo-se que algumas das normas penais ali constantes acabam, na prática, por serem autênticas normas penais em branco;
Parece-nos que é chegada a altura do poder legislativo ponderar seriamente sobre estas preocupações e suspender provisoriamente as anunciadas alterações (ou quaisquer outras) até que seja integralmente revisto o RJAM.
E que essa revisão se inicie pela nomeação de uma comissão plural, isenta, que integre especialistas naquelas matérias que o RJAM abrange.
Comissão na qual deveriam ter assento, representantes de ambas as magistraturas, criminólogos, constitucionalistas, especialistas de reconhecido mérito nas áreas das armas, munições e balística, representantes dos atiradores desportivos, dos caçadores, dos colecionadores e dos armeiros.
É precisamente essa a petição/proposta que se apresenta a V.Exªs,
Porque:
Só com tal revisão integral se poderá voltar a uma ter um regime jurídico com uma estrutura coerente.
Só assim se poderão corrigir definições legais que – após tantas alterações - já nada definem em concreto e passaram a ser tão subjetivas e abstratas que abarcam tudo.
Só assim se poderão rever e corrigir proibições que atualmente se sustentam em conceitos altamente subjetivos sem qualquer suporte técnico nem científico.
Só assim se acabará com o desmedido poder discricionário que foi sendo atribuído à Polícia de Segurança Pública.
Só assim se poderá voltar a ter uma lei penal, nesta matéria, inteligível e que esclareça cabalmente;
1. O que é proibido;
2. Onde é proibido;
3. Porque é proibido.
Até porque, com as propostas que foram dadas a conhecer pelo MAI, a falta de rigor de novas definições legais supera em larga medida as já existentes, constituindo um retrocesso nítido.
Definições que acabam por não definir o que quer que seja!
O mesmo acontece com as normas onde se prevêem as proibições/punições, que depois de articuladas com as definições legais, criam mais (porque se juntam ás já existentes) normas penais em branco.
Coloca-se no mesmo patamar de proibição/punição; o que é, o que pode vir a ser, o que parece ser e o que pode vir a parecer ser.
Neste momento já se proíbe tudo sem qualquer justificação, sem qualquer relação entre o que é proibido e o perigo que pode causar.
Abandonaram-se os referenciais mensuráveis, claros, estáveis e trocaram-se por conceitos como: "aparência"; "independentemente das suas dimensões" "possa vir a ser..."; “possa ser confundido", etc.
Perdeu-se por completo a edificação e finalidade da lei 5/2006 original.
O que neste momento é legal para alguns cidadãos detentores de licenças (depois de escrutinado, registado, licenciado e inspecionado) deixará de o ser, sem que se perceba porquê.
Bastará o "aspeto", ou a adição de um acessório tão simples e comum como, por exemplo, um bipé. E logo uma carabina (legal) de classe C passa a arma proibida de classe A. Tão proibida (apesar de registada e licenciada), que passa para o patamar superior das proibições, ficando a par com as armas nucleares.
E tudo porquê? Por o seu legítimo detentor lhe acoplou um bipé! E qual o perigo do bipé?
Passa-se a tomar a parte pelo todo. E proibindo o mais, passa-se também a proibir o menos!
Passa-se a tratar como igual o que é diferente (veja-se o caso das munições e confronte-se a definição legal ainda vigente, com a agora proposta).
Alteram-se definições técnicas/legais relativamente às quais nunca houve críticas e substituem-se por "amontoados de palavras" sem qualquer cuidado com a redação, sem respeito pelas regras da escrita, sem qualquer vantagem em relação ao que antes existia.
A não ser que, para este legislador, a vantagem seja a enorme dose de subjetividade que se promove; o poder discricionário que fomenta e a confusão que vem criar?
Veja-se a título de exemplo a nova definição legal de “arma de fogo”. Torna-se difícil saber o que não cabe naquele universo vasto e indefinido. Ou seja, o que é que não será "arma de fogo"?
O mesmo acontece quanto à nova definição de “arma branca”.
Entre outras novas “definições legais” que nada definem…
O que é que de futuro não será proibido em Portugal?
Aonde se poderá estar com coisas que são e sempre foram legais?
Poder-se-á sair à rua sem correr o risco de ser detido por crime de posse de arma proibida?
Não!
Não se pode! Com este articulado que agora é proposto não é possível.
Veja-se – apenas a título de exemplo – o artigo 89º, conforme proposto:
“Artigo 89.º
Locais onde é proibida a detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou substâncias
Quem, sem estar especificamente autorizado por legítimo motivo de serviço ou pela autoridade legalmente competente, transportar, detiver, usar, distribuir ou for portador, em recintos religiosos ou outros ainda que afetos temporária ou ocasionalmente ao culto religioso, em recintos desportivos ou na deslocação de ou para os mesmos aquando da realização de espetáculo desportivo, em zona de exclusão, em estabelecimentos ou locais onde decorram reunião, manifestação, comício ou desfile, cívicos ou políticos, bem como em instalações oficiais dos órgãos de soberania, instalações das forças armadas ou forças e serviços de segurança, zonas restritas das infraestruturas aeroportuárias e portuárias, estabelecimentos de ensino, estabelecimentos hospitalares, estabelecimentos prisionais, estabelecimentos ou locais de diversão, feiras e mercados, qualquer das armas previstas no n.º 1 do artigo 2.º, ou quaisquer munições, engenhos, instrumentos, mecanismos, produtos, artigos ou substâncias referidos no artigo 86.º, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”
Embora sem entrar num análise exaustiva do que ali consta, pois tal deverá ser feito em sede de revisão legislativa e mesmo sem estar aqui a correlacionar a proibição com as definições legais de que se socorre. Apenas se colocam – agora – as seguintes questões:
Será que o legislador ainda não percebeu que – mesmo com o texto atualmente em vigor – as proibições do art.º 89º violam o Princípio da Legalidade e proíbem praticamente tudo (seja ou não perigoso, seja ou não banal, justifique-se ou não a sua posse) em praticamente todo o lado, inclusivamente no recato da residência de cada um?
Será que o legislador pretende que qualquer das “armas” (entre aspas, porque ali se enumeram coisas que não são armas e outras que não são proibidas) elencadas no nº 1 do art.º 2º sirvam de referencial para este artigo?
Será que o legislador ainda não se apercebeu que mesmo o atual articulado já permite deter e imputar a qualquer cidadão a prática de crimes graves por terem comportamentos perfeitamente banais que em nada fazem perigar a segurança de quem quer que seja?
Aquele é um dos muitos exemplos da abrangência de proibições absurdas que, com a atual proposta do MAI, se agravam.
Aumenta-se de sobremaneira o poder discricionário e desse modo fomenta-se um Estado policial securitário, que persegue – sobretudo – quem cumpre a lei, imputando-lhes tantas obrigações e restrições que acaba por o tornar num criminoso.
Note-se que estar constantemente a legislar sobre a mesma matéria, mudando radicalmente as regras de uma revisão para a outra, destrói a confiança no Estado e é uma estratégia de política criminal contraproducente. Sobretudo quando com esta proposta do MAI se violam os princípios da boa fé, confiança, estabilidade jurídica, necessidade e adequação.
Está-se - sem dúvida alguma e só não o vê quem não quer – a fomentar de o mercado negro das armas.
Assim sendo, o que justifica esta proposta do MAI?
Qual a justificação para – passados cinco anos sobre a última revisão do RJAM – enveredar por este radicalismo e legislar deste modo que viola tão grosseiramente a C.R.P.?
Qual a justificação para proibir o que agora se vai proibir?
Qual a justificação para passar a punir com pena de prisão a simples posse de (mais) coisas que sempre foram legais e inócuas?
Porventura ajudará a compreender este radicalismo se se souber quem redigiu a proposta de alteração legislativa subscrita pelo MAI e conhecidas as suas motivações.
E também interessa saber;
• Que competências: técnicas, jurídicas e científicas, tem quem redigiu as novas definições legais?
• Qual a justificação - caso a caso - para a alteração das atuais definições legais?
• Qual a justificação - caso a caso - para a inclusão de novas definições legais?
• Qual a justificação – caso a caso – para a criminalização da posse de mais “coisas” para além das que já são proibidas pela lei vigente?
Note-se que mesmo nas reuniões entre o MAI e algumas das associações que foram auscultadas a “contra-relógio”, não foram apresentadas quaisquer justificações para estas mudanças, nem respondidas estas questões.
Recorde-se que as definições legais constantes da redação original da lei 5/2006 resultaram de anos de discussão. Trabalho que foi produzido em sede reuniões de uma comissão plural (que depois se foi socorrendo de especialistas em cada matéria).
Comissão que foi nomeada especificamente para o efeito.
Quem é que, agora, quer sobrepor-se ao trabalho técnico daquela comissão?
Não se deve legislar apenas porque se pode legislar.
Legisla-se, porque e quando, é necessário legislar!
Onde está a necessidade neste caso?
Que fenómenos criminais ocorreram ou que aconteceu de tão grave desde a última revisão da lei 5/2006 (ou seja, 2013). Pois se há tanta pressa presa nestas medidas radicais é porque algo aconteceu entretanto!
Ou será que, afinal, nada aconteceu de extraordinário. Para além da criminalidade ter diminuído, conforme também tem sido sobejamente publicitado?
Não. Não foi a nova diretiva comunitária. Pois se só dessa se tratasse as alterações seriam cirúrgicas e nada teriam a ver com a vasta maioria do que agora se propõe tornar letra de lei.
E sobre a muito repetida “justificação” propagandística que vem a público, interessa saber:
Onde estão os dados concretos e fidedignos relativos ao número de armas "de caça" que alegadamente estão em detenção domiciliária (as tais 500.000)?
Quantas armas dessas foram furtadas desde a última revisão legislativa da lei 5/2006?
Em que medida esse número de furtos justifica uma alteração legislativa que se consubstancia numa tão grande ingerência do Estado na liberdade de cada um e na violação do direito de propriedade?
Interessa conhecer estas respostas, pois se de uma pandemia se tratar, percebe-se que o Estado tenha que recorrer a medidas extremas. Todavia, se estivermos perante um número residual de furtos das tais armas em detenção domiciliária, deixa de haver justificação para medidas de exceção.
Sendo que, em caso algum, há ou poderá haver, justificação para legislar em violação à C.R.P. e aos princípios basilares do nosso Estado de Direito.
Porventura seria interessante conhecer, nesta contabilidade aos alegados furtos de armas em detenção domiciliária, que é a base da “propaganda” sobre a alegada “necessidade de legislar”, qual o rácio entre as armas furtadas aos "civis" e as furtadas ao Estado (sejam Forças Armadas ou forças e serviços de segurança).
Interessa também perceber;
Se – como vai afirmando o MAI durante as reuniões que agora decorrem –- as novas definições legais não são assim tão importantes, quer para atiradores desportivos, quer para colecionadores, porque é que as introduziram e porque mudaram as anteriores?
Porque é que ao fim de tantas revisões da lei 5/2006, só agora apareceram tão eminentes especialistas que consideram estar erradas as definições legais que agora pretendem alterar?
Porque é que se aumenta substancialmente a dose de subjetividade e se abandonam (ainda mais) os referenciais mensuráveis, inequívocos e claros, nas definições legais agora propostas?
Porque é que se criam tantas "normas penais em branco"?
Porque é que se aumenta de sobremaneira o poder discricionário da PSP?
Mais uma vez; qual a razão das novas proibições?
Por exemplo: qual o perigo real e como foi quantificado/avaliado, que representam as armas com “aspeto militar”? Porque considera o MAI que o perigo existe se as armas forem usadas na caça, mas deixa de existir se as mesmíssimas armas forem usadas no tiro desportivo?
Porque vem a PSP assumir competências que até agora são exclusivas do Ministério da Defesa Nacional e outras que - em certos casos - dependem desse e do Ministério dos Negócios Estrangeiros? (todo o pacote legislativo a que se reporta a "Lista Militar Comum da Comunidade", que é - em parte, mas não só - matéria que com a redação atual está expressamente excluída do âmbito de aplicação do RJAM (vide art.º 1º, nº 2).
Como é possível que se passe a usar a Lista Militar Comum como referencial para uma lei penal que trata do que é proibido deter?
Ou será que quem legisla desconhece em absoluto qual a razão que justifica aquela lista e porque motivo se reporta a legislação já existente, que nada tem a ver com os crimes de posse de arma proibida?
Porque é que o MAI quer - através da alteração uma “lei ordinária”, que é a lei 5/2006 - ultrapassar o que já está consignado em "leis especiais", como são alguns estatutos profissionais e leis orgânicas que estabelecem sobre o uso e porte de arma dos membros das Forças Armadas e forças e serviços de segurança?
Será que devem ser tratados como iguais todos os profissionais abrangidos por tais leis especiais, sabendo-se que a sua relação com as armas e os seus níveis de treino são completamente distintos?
Fará algum sentido que, depois do legislador ter analisado (em sede de estatutos profissionais e/ou leis orgânicas) as situações particulares daquelas forças, venha depois a PSP ter poder discricionário quanto ao que os seus membros vêem consagrado, naquelas leis especiais que já estabelecem os seus direitos e deveres relativamente ao uso e porte de armas, acessórios e munições?
Fará algum sentido (sobretudo a nível de prevenção criminal) que aqueles que têm o direito e dever de andar armados e que por força de especiais vulnerabilidades decorrentes da sua atividade profissional, passem a ser tratados após o seu horário “normal” de serviço, como um comum cidadão?
É que não pode ser tratado como igual o que é diferente! E o cidadão comum que está abrangido por esta lei ordinária, não tem o treino que aqueles têm, nem está sujeito ás obrigações legais permanentes (que não distinguem horários de serviço) que pendem sobre esses profissionais do Estado.
Então como se justifica a subtil alteração entre virgulas do art.º 1º, n.º 5?
Não será uma tentativa da PSP passar a ter a hegemonia de tudo o que tenha a ver com som armas e afins (escrevo "afins" tendo em conta as definições legais que tratam como armas coisas que não o são) e se sobrepor ao que outros ministérios já analisaram, decidiram e sobre o qual o Estado já legislou?
Por fim:
Como é possível (e como foi permitido hierarquicamente) que quem representa o Estado, e neste caso concreto o Governo, apresente, como proposta de discussão, um documento que viola grosseiramente e de forma evidente, princípios basilares do nosso Estado de Direito e desrespeita aquela que é a pedra basilar de todas as leis nacionais?
Porto, 26 de Agosto de 2018,
Vítor Manuel Pinto Teixeira, Cidadão Português (C.C. 6850415)